Capítulo XVIII

Ao final da manhã o clima mudou um pouco e o dia tornou-se propício para o repouso. Entretanto havia tanto a fazer, tanto a aprender e o tempo era precioso agora. A pequena princesa então se dirigiu à biblioteca disposta a mergulhar nos livros.

Chegando lá olhou para todos os lados a fim de verificar se realmente ninguém havia efetuado a limpeza do aposento, como solicitara a criadagem na noite anterior. Tudo estava como antes e ela agradeceu aos céus por isso. Teria tido um grande trabalho se os livros tivessem sido guardados e ela tivesse que localizá-los todos novamente. Além disso, cada um continha pedaços de papel marcando páginas onde tinha informações relevantes. Se estavam marcadas haviam de ser importantes e não poderia correr o risco de perdê-las. Cada uma das páginas indicadas pelos papéis era um passo à frente no propósito de conquistar conhecimento em cada um dos temas.

Sentou-se e olhou para os livros. Resolveu que dedicaria o dia para o estudo dos símbolos e códigos usados em cartas marítimas, mapas estelares e mapas geográficos, já que era o que mais se assemelhava com o estudo das medições geográficas e marítimas, visto no dia anterior. Seria como uma extensão de estudo, facilitando o entendimento, pensou ela.

Pegou o livro e abriu na página indicada e retirou o papel. Neste, vários códigos indicavam que alguém havia feito anotações e apontamentos importantes. Na página aberta havia um quadro composto de símbolos com seus respectivos significados. Cada um dos símbolos tinha mais de um significado, dependendo do contexto em que era usado. O mesmo símbolo, por exemplo, poderia indicar uma laguna no mar ou um leito de rio. Outro símbolo poderia significar uma várzea margeando um rio ou uma planície extensa sem nenhum cultivo. Por isso era imprescindível compreender perfeitamente todas as possibilidades de interpretação e isso, certamente exigiria um pouco mais de esforço, tempo e vontade do que no dia anterior. Respirou fundo e entregou-se à leitura.

O tempo passou e ela nem percebeu que não havia almoçado. Devorava cada linha e cada traço como se aquilo fosse necessário para sua própria sobrevivência. Treinava os códigos e desenhava os símbolos. Como no dia anterior, procurou nas estantes repletas, outros livros que complementassem as informações. Achava estranho como aquilo tudo era tão interessante e como tudo sentia as informações penetrando em sua mente de maneira natural, como se tivesse nascido para aquilo.

Ao final da tarde, fechou o livro diante de si com a certeza de que poderia usar seus conhecimentos com segurança. Arrumou tudo a um canto da mesa e percebeu o quanto estava cansada. Levantou-se e já estava pronta para sair do aposento quando percebeu um brilho no chão, perto do biombo vermelho. Chegou mais perto e viu a pequena corrente dourada, a mesma que vira certa vez nas mãos de Theodore. Estava quase que totalmente coberta pelo biombo, mas a pequena parte que estava para fora foi suficiente para que pudesse identificá-la. Tentou puxá-la, mas não conseguiu. A corrente não saía debaixo do biombo, apesar de tão fina.

A princesa olhou, olhou e pensou que talvez... se conseguisse abrir novamente aquele pouquinho de outro dia, poderia ir puxando-a para o lado até que chegasse à pequena abertura. Clicou então na saliência descoberta no outro dia e tornou a ouvir o clique característico. Pegou um livro já planejando colocá-lo no primeiro vão que conseguisse abrir, pois sabia que o tanto que abrisse, tornaria a fechar assim que deixasse de ser puxado, como se houvesse uma mola mantendo o biombo sempre fechado.

Puxou e puxou até que a abertura fosse suficiente para colocar o livro. Pegou então a ponta da corrente e foi tentando deslizá-la para o lado, muito delicadamente. Finalmente a corrente chegou à abertura e pôde ser retirada. O que estava prendendo-a sob o biombo era uma linda peça em ouro. Trata-se de um coração de ouro, com um rico trabalho em relevo. Era muito, muito bonito. Lembrou-se da maneira que Theodore segurava a corrente e movia os lábios murmurando algo incompreensível.

Escolheu uma poltrona confortável onde pudesse analisar melhor o adorno. Devia medir apenas dois centímetros de lado a lado. Olhou atrás e percebeu que faltava o trabalho em relevo. Virou entre as mãos e percebeu que em um dos lados, onde se unia as duas faces havia uma pequena saliência. Parecia ser um tipo de dobradiça. Talvez fosse possível abrir, separar as duas partes. Pela largura seria possível sim.

Não pôde verificar essa possibilidade, entretanto. Ouviu sons vindos do corredor e sabia que a qualquer momento alguém poderia entrar à sua procura. Passara o dia lá sem fazer nenhuma refeição e já era hora de se recolher. Guardou a corrente e o coração dentro do decote e levantou-se, no instante exato em que a porta se abriu. Não era uma criada lhe avisando sobre o horário. Parado na porta, ainda segurando a maçaneta estava Theodore. Quando viu a princesa pareceu ficar muito surpreso. Ficou alguns segundos parado como se não a esperasse ali àquela hora e não soubesse exatamente o que devia fazer. Logo atrás dele havia alguém, mas não era possível reconhecer, sendo mais baixa que o livreiro. Num instante ele se recompôs fazendo uma pequena reverência com a cabeça. Com calma ele disse:

– Boa noite, princesa. Desculpe-me. Pensei que não houvesse ninguém aqui neste horário. Não vou incomodá-la. – e foi virando-se para sair virando sobre os próprios pés. A pessoa que se encontrava no corredor devia ter percebido o ocorrido, pois não era mais possível vê-la. Neste momento sentiu como se um milhão de palavras povoasse sua cabeça e disse quase sem pensar:

– Não! Não se vá ainda! Eu desejava mesmo encontrá-lo para conversarmos. Há alguém aí fora? Quem é?

Ele pareceu embaraçado, mas logo se recompôs. Assentiu silenciosamente e afastou para dar lugar à pessoa. Era Moira quem entrava, com uma expressão de respeito e confusão no rosto conhecido. Parecia não querer entrar, mas, como criança pega em meio à travessura, concordou um pouco constrangida.

Imediatamente Ameba percebeu seu embaraço e disse gentil:

– Ah, sua esposa Moira. Pode entrar também, é claro.

Ambos, Theodore e Moira, pareceram surpresos por ela mencionar seu relacionamento sem que nenhum deles tivesse anteriormente revelado.
Ameba também percebeu a reação de ambos e completou:

– Sim, sei que são casados. Eu os procurei na cozinha ontem e me informaram sobre sua ausência. Quando estranhei o fato de ambos se ausentarem no mesmo dia fui informada sobre isso. Conseguiram resolver seus problemas? A ausência foi proveitosa?

A expressão dos dois criados chegou a dar pena, tal era a surpresa estampada em seus rostos. Nunca tinham ouvido a princesinha falando assim, com tanta desenvoltura e gentileza. Então sorriu, tentando tornar o momento mais leve. Não funcionou. O casal se entreolhou e voltou a olhar para a princesa, sem entender o que poderia estar acontecendo. Ameba, por sua vez, decepcionada com sua própria falta de tato, suspirou. Com um muxoxo sentou-se novamente. Não havia como reparar o efeito de causara o seu entusiasmo inesperado. Resolveu tentar de outra forma:

– Boa noite, Theodore. Boa noite, Moira. Por favor, gostaria de fazer algumas perguntas a vocês. Vocês não entenderiam mesmo meu novo comportamento sem que lhes conte tudo o que aconteceu nos últimos dois dias. Aliás, nas últimas semanas têm acontecido muitas coisas em minha vida. É como se minha vida estivesse virando de ponta-cabeça. Mas não se preocupem, ainda sou a princesa que conhecem, embora mais amadurecida, eu creio.

Desta vez parecia ter acertado um pouco melhor nas palavras. As expressões de surpresa quase horrorizada transformaram-se em agradável surpresa. Ameba teve a impressão de ver até certo ar de orgulho e... respeito, como em William!

– Pois não, senhorita. – Era Theodore quem dizia calmamente enquanto tocava de leve o cotovelo de Moira, ao que ela pareceu concordou:

– Pois não, princesa. – e ela sentiu que finalmente teria algumas respostas.

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