Capítulo XVI

Assim que entrou na biblioteca Ameba percebeu que ninguém havia estado lá para fazer a limpeza diária. O recinto era de responsabilidade de Theodore e Moira e, como eles não se encontravam, tudo permanecia como antes, com os quatro livros sobre a mesa, as ferramentas de medição espalhadas e a mesinha caída. Sentou-se e pegou o primeiro livro. Leu um pequeno trecho na página aberta.

“Estudo prático de cálculos - Posicionamento Global - A nossa posição sobre a
Terra é referenciada em relação ao equador e ao meridiano de Greenwich e
traduz-se por três números: a latitude, a longitude e a altitude.
A
longitude é obtida da comparação de horas homogêneas num mesmo instante, sendo
essas horas referidas, respectivamente, ao meridiano de Greenwich e ao meridiano
local.”

Resolveu reler para entender melhor. Com os instrumentos ali mesmo, sobre a mesa, ia lendo e tocando cada um deles na medida em que eram citados no livro e sentia que poderia aprender a lidar com eles quase que facilmente. Como se estivesse apenas relembrando algo já aprendido há tempos, foi se familiarizando com cada peça enquanto lia as páginas repletas de cálculos sobre latitude e longitude. Pegou papel e caneta e foi rabiscando códigos e cálculos a fim de compreender todas as instruções contidas naquelas linhas. Quando se sentiu um pouco mais confiante pegou o mapa e olhou atentamente para cada anotação feita nas laterais. Mas não era tão fácil assim. Faltavam-lhe outros conhecimentos que não constavam do primeiro livro. Reconhecia algumas das anotações, mas havia mais uma série de outras notas que não se encaixavam no estudo recém descoberto.

Então ouviu a porta se abrindo. Era uma das criadas as quais havia encontrado na cozinha quando estava à procura de Moira. Tinha nas mãos alguns apetrechos de limpeza e quando percebeu que a princesa ali se encontrava, fez uma mesura respeitosa e ficou hesitante por alguns instantes. Porém, seus olhos pousaram na desordem do cômodo e não deixou de perceber a mesinha virada no chão. Seus olhos se abriram um pouco mais e seus lábios entreabriram-se. Rapidamente a princesa levantou-se e disse apressadamente:

– Pode deixar a limpeza para amanhã. Estou usando a biblioteca e desejo que fique assim, como está. Não quero correr o risco de perder nenhum livro ou anotação que fiz até agora. Pode ir. Se alguém perguntar, me responsabilizarei pela desordem.

A mocinha fez uma nova mesura, desta vez muito mais tranqüila, já que não haveria ninguém que a fosse culpar por não ter feito sua obrigação.

No instante em que a criada saiu, outro clique na porta. Era outra criada, desta vez a chamando para o almoço pois já havia passado da hora. Isso até era comum ultimamente, pois cada dia que passava mais e mais situações atípicas aconteciam impedindo-a de fazer as refeições no horário correto. Não era realmente um problema já que seus pais não faziam questão de que as refeições fossem compartilhadas por todos os membros da família. Normalmente seu pai nem se encontrava no reino, sempre viajando e tratando de coisas importantíssimas que a princesa nem fazia idéia do que se tratava. Sua mãe, por sua vez, alternava entre enxaquecas, súbitas indisposições e dietas. Assim, comera só.

Imediatamente após o almoço, o mais rápido que pôde, voltou à biblioteca para continuar com seus estudos. Percebeu que até poderia gostar do assunto. Sentou-se muito animada e continuou lendo o livro sobre medições geográficas, sentindo mais uma vez que aquilo parecia familiar.
Estudou a tarde toda. Consultou outros livros semelhantes que não se encontravam sobre a mesa mas que continham informações interessantes e úteis. Treinou seus novos conhecimentos em papéis, no globo terrestre enorme que ficava no chão ali perto e em mapas. Ao final da tarde sentia-se muito mais preparada para ler dados geográficos. Sorriu satisfeita e organizou tudo o que usara durante seu período de estudo num canto da mesa. Talvez ainda precisasse consultar algum daqueles livros e ferramentas.

Resolveu que no dia seguinte faria o mesmo com outro dos quatro livros e, desta forma, ao final de mais três dias estaria apta a tentar decifrar o mapa com suas anotações tão estranhas. Arrumou então todo o material que se encontrava na mesa de acordo com o assunto.
O primeiro canto já estava organizado e todo tomado com o tema “cálculos geográficos”. No segundo ficaria com o livro de “códigos e símbolos geográficos e marítimos”. No terceiro, “astrologia, astronomia e os fenômenos naturais”. Finalmente, no quarto canto da mesa ela deixou o livro de “histórias, lendas, mitologia e magia”. Em cada um dos cantos colocaria todo o material usado em seus estudos e teria então os meios de buscar respostas a algumas de suas dúvidas que a atormentavam.

Resolveu recolher-se e descansar bastante para que, no dia seguinte, pudesse encontrar disposição visto que teria grande parte da manhã tomada por seus compromissos reais.

Chegando ao quarto, correu para guardar o mapa e, subitamente lhe ocorreu que no dia seguinte, Theodore e Moira já poderiam estar de volta e a biblioteca seria arrumada e limpa. Mesmo que eles não voltassem, alguma criada iria, com certeza, tratar da limpeza do local. Todo o material organizado sobre a mesa seria retirado e guardado e então, perderia todo o fio da meada.

Saiu do quarto com cuidado achando melhor não ser vista andando pelo castelo naquele horário o que não era muito comum. Foi até a cozinha e, como no dia anterior, procurou por um rosto conhecido. Viu então a mesma senhora que havia falado sobre Theodore e Moira. Estava mais ao fundo dando instruções a outra senhora bem mais jovem. Quando viu a princesa na porta, correu para ela e, com uma mesura rápida perguntou:

– Sim, princesa. Precisa de algo? Talvez um lanche antes de recolher-se?
– Não, não tenho fome. Eu... quem fará a limpeza da biblioteca amanhã?
– Como, senhorita?
– A biblioteca. Quem limpará no caso de Moira ou Theodore não puderem novamente? De quem é a função neste caso?
– Como hoje, senhorita, será Danielle quem fará a limpeza. Apenas no caso de Moira não comparecer novamente, é claro.

A pequena princesa percebeu que Danielle não comentara sobre o fato de não ter limpado o local a pedido da própria princesa. Também percebeu que a senhora mais velha fizera questão de deixar claro que a ausência de Moira e Theodore não era esperada também para o dia seguinte.

– Bem, neste caso eu gostaria que a biblioteca não fosse arrumada amanhã. E nem depois de amanhã. Melhor ainda, não deve ser tocada até que eu a libere.
– Mas, senhorita... e a sujeira?
– Não há de ter tanta sujeira assim. Serão apenas dois ou três dias. Serão suficientes para mim. Espalhei uma série de livros e objetos por toda a sala e não gostaria que fossem movidas ou guardadas. Assim, será melhor que ninguém entre lá até que eu os use e decida guardá-los todos.

A senhora abaixou os olhos, nitidamente incomodada. Não retrucou, porém. Apenas assentiu com a cabeça murmurando um “sim, senhorita; como queira” quase inaudível.
Já quase saindo da cozinha a princesa ainda perguntou:

– Todos serão avisados, não? Não há o risco de Moira chegar amanhã e...
– Não, senhorita. Moira virá falar comigo assim que chegar, como é o costume. Assim como Theodore.
– Está bem então. – e finalizando – Acredito que não há necessidade de incomodar a rainha com uma bobagem sem importância como esta, certo? – e saiu sem esperar resposta.

Estranhando seu próprio comportamento decidido, voltou ao quarto um pouco mais tranqüila. Pensou na surpresa das criadas ao receber ordens tão claras da mesma princesinha frágil de sempre. Riu abertamente sentindo-se diferente, como que descobrindo em si mesma uma faceta que não conhecia: a real firmeza que cabe a um membro da realeza.

1 comentários:

Strip Poker disse...

It is rather valuable piece