Capítulo XX

Saiu do quarto pé ante pé. Olhando para os lados, foi caminhando devagar pelos corredores, escolhendo caminhos que ela acreditava serem mais seguros. Não estava acostumada a caminhar pelo castelo neste horário. Apesar disso, sabia que se algum empregado ainda estivesse acordado, estaria em determinadas áreas, as quais ela evitou na medida do possível.

Eram dois andares para descer. Escolheu a escada mais próxima de seu quarto, mas chegando ao primeiro andar, precisou percorrer todo o corredor para ter acesso à outra escada, a fim de evitar os cômodos da área de refeições. Depois, já no andar térreo da construção, percorreu novamente todo o corredor para ter acesso ao jardim por uma porta lateral, mais discreta.

Em alguns trechos precisou usar seu instinto, como Theodore havia dito, tal era a escuridão. Mas continuou, decidida. Já estava quase chegando à porta envidraçada por onde sairia, quando ouviu passos. Olhou ao redor procurando um local para esconder. O som dos passos ficava mais alto e ela não tinha muito tempo. Sem outra opção, jogou-se no chão e rolou para o lado entrando debaixo de um aparador de onde pendiam duas frondosas samambaias. Estas, de tão amplas, quase chegavam ao chão, como uma saia, atrás da qual a princesa se escondeu. Confiando no fato de estar escuro, ficou ali quieta e esperou que o criado passasse. Esperou um pouco mais e quando teve certeza de que ele não voltaria, saiu debaixo do aparador e dirigiu-se rapidamente à porta do jardim.

Com um ruído seco destrancou a porta e a abriu, bem devagar. O cheiro das flores invadiu seus sentidos e o ar fresco da noite a envolveu. Ajustou o xale nos ombros e saiu, tomando o cuidado de fechar novamente a porta. Não sabia para onde devia ir, mas confiou que William logo a encontraria. E assim aconteceu. Ela nem precisou dar dois passos e ele já estava ao seu lado. À luz do luar ele parecia ainda mais bonito. Olhava para ela com tanto cuidado. Tinha nos olhos aquele mesmo brilho da manhã, talvez um pouco mais intenso agora. O tempo pareceu parar e aquele olhar penetrou o fundo de sua alma. Sentiu-se subitamente calma. Sorriu para ele e esperou que aquele momento nunca acabasse. Então uma brisa tocou seu rosto e a despertou. O rapaz também pareceu perceber que precisavam sair dali o mais rápido possível. Foi apenas um sussurro:

– Venha, não há muito tempo. Ninguém pode nos ver aqui.

O rapaz pegou sua mão e rapidamente a puxou para dentro de um arbusto alto. O toque macio em sua mão era tão natural quanto era estranho entrar no meio de um arbusto àquela hora da noite. Sentiu-se levada através das folhas por alguns passos até chegar a um portão oculto pela vegetação. Nunca soube que havia ali um portão. Indagou-se para onde daria, mas não houve muito tempo para pensar nisso - logo foram entrando por ele. Do outro lado, corredores sem janelas, como um porão, iluminados por tochas presas às paredes úmidas. Seguiram por aproximadamente seis metros num aclive leve até chegar a uma escada que descia até um átrio pequeno com apenas duas portas situadas em lados opostos. Tomaram a da direita, saindo em outro corredor por onde andaram mais alguns metros até chegar diante de uma bifurcação onde cada um dos lados dava acesso a uma escadaria. A da esquerda descia ainda mais e a da direita subia. Tomaram a escada da direita e subiram por uma escada estreita e sinuosa que terminava numa porta muito pequena e velha, sendo necessário ajoelharem-se para atravessar. Atrás dela havia outro arbusto numa área que parecia ser um pequeno pátio, largo e descoberto.

Saíram pela pequena porta com certa dificuldade. No centro havia um poço de onde saía um suporte de madeira. Um balde, preso ao suporte por uma corda, descansava na beirada do poço. Do mesmo suporte, saíam vários arames que tinham as outras extremidades presas nas paredes externas do pátio, onde várias portas intercalavam outras tantas janelas. Havia apenas um pequeno archote iluminando o pátio. Atravessaram rapidamente, desviando de lençóis alvos pendurados nos varais parando diante de uma das portas, ao lado da única janela um pouco iluminada.

William bateu levemente, abriu a porta e deixou-a entrar antes dele. Finalmente, do outro lado, estavam Theodore e Moira. Era uma sala pequena com aparência extremamente simples, mas muito aconchegante. Tecidos bonitos e coloridos adornavam três poltronas pequenas ao redor de uma lareira discreta. Na mesma parede, mais à direita, um fogão com um velho bule soltava uma pequena nuvem de fumaça branca. Havia também uma mesa de madeira rústica arrumada para quatro pessoas, com grandes canecas de cerâmica e um prato de bolinhos no centro. O aroma do café fresco inundava o ambiente e os convidava a uma boa conversa.

Sentiu-se bem vinda e sorriu para si mesma. Trocaram cumprimentos e Theodore indicou uma das cadeiras ao redor da mesa à princesa. William sentou-se de seu lado direito, Theodore em frente e Moira, depois de pegar o bule no fogão, encheu de café cada uma das canecas antes de sentar-se de seu lado esquerdo. A bebida estava quente e saborosa. Achou que seria educado aceitar os bolinhos que Moira lhe oferecia. Eram deliciosos, nada parecidos com o que comia no castelo. Saboreou-os com a expressão claramente satisfeita. Então, sentiu a ansiedade voltar novamente. Queria que começassem logo a falar, a tirá-la da escuridão em que se encontrava. Não entendia nada do que estava acontecendo e aquela família parecia ter ao menos algumas respostas. O café estava quente e encorpado, muito saboroso. Ela pensou que não poderia haver bebida melhor numa ocasião como aquela. Sentiu-se aquecida e agradecida. Descansou a caneca na mesa e fixou o olhar em Theodore a fim de deixar claro que estava pronta para ouvir, fosse o que fosse.
O velho senhor a olhou com muito carinho e disse:

– Princesa, não sei se poderemos dar todas as respostas às suas dúvidas mas garanto que diremos tudo o que soubermos. Aquilo que não estiver ao nosso alcance, teremos que descobrir juntos. Tudo o que ouvir aqui hoje pode parecer uma grande loucura. Porém, diante do que nos confidenciou na biblioteca, acredito que não será mais louco do que os sonhos e os acontecimentos a que a senhorita se referiu.

– Certo.

– Pois bem. Moira, eu e William não somos daqui deste reino. Viemos de muito longe há muitos anos. Morávamos numa terra distante onde ocorreu uma grande tragédia, anos atrás. Na ocasião, Moira, muito abalada com o tumulto, deu à luz a William, dias antes do esperado. Ele nasceu em meio a uma grande confusão e temíamos por nossa família. Todo o reinado estava aterrorizado. – ele parou por alguns segundos escolhendo as palavras. – Havia um castelo. O rei e a rainha eram felizes juntos, se amavam verdadeiramente. Apenas uma coisa impedia que a felicidade fosse completa: eles não tinham filhos. Por anos e anos eles tentavam e rezavam por um filho, mas não acontecia. Então, o rei ficou sabendo que existia um feiticeiro poderoso que, segundo diziam, poderia dar a eles este filho. – O velho senhor parou e olhou para a princesa tentando ler sua expressão. Conseguiu ver a surpresa se mesclando ao interesse. Não havia descrença. Então, continuou:

– O rei, temendo dar falsas esperanças à princesa, resolver ir sozinho até o feiticeiro e conferir seus poderes, mesmo sabendo que correria grande perigo. Mas amava muito a esposa e faria qualquer coisa para dar a ela a felicidade que lhe faltava, uma criança. Disse à rainha que viajaria para resolver algumas pendências referentes ao reino. Se o feiticeiro realmente pudesse ajudá-los, voltaria então à sua esposa com a feliz notícia.
Então ele partiu. Sabia que o percurso ficaria mais difícil na medida em que se aproximasse da caverna onde vivia o bruxo. Durante muitos dias ele seguiu por caminhos obscuros e repletos de obstáculos, mas sua perseverança e seu amor o levaram a sobreviver. Quando finalmente ele se viu cara a cara com o feiticeiro, não precisou dizer seu desejo. Já era esperado e logo ouviu o preço que teria que pagar: “uma vida por outra”. Ele teria a criança se desse em troca a vida de outra criança.

Neste momento a princesa não conteve uma exclamação de horror. Theodore continuou então:

– Sim, o rei também achou uma proposta horrível e indignado com tal disparate foi-se embora. No caminho de volta, já bem longe da caverna, encontrou uma velhinha muito misteriosa que lhe abordou e disse, sem rodeios que tomasse muito cuidado a partir daquele momento. O rei não entendeu e perguntou à velha senhora a que ela estava se referindo. Ela olhou bem para ele e disse pausadamente: “Quem procura o que não conhece será procurado por toda a eternidade e terá que arcar com o preço de tal imprudência”. Quando o rei indagou o que significava a sentença ouviu apenas: “Pense bem naquilo que pediste dias atrás, mesmo que pareça não ter pedido. Se um dia os céus lhe mandarem o que tanto queria, poderá ser cobrado por ele, como se tivesse sido atendido por ele, mesmo não sendo o responsável pela graça conseguida.” O rei perguntou quem era “ele”, mas a velhinha não disse mais nada e se foi.

A princesinha, muito ansiosa, perguntou:

– Era o feiticeiro, não? “Ele” era o feiticeiro para quem o rei ia pedir a criança. Mas ele não pediu! Ele desistiu e foi-se embora!

– Sim, acreditamos que era sim o feiticeiro. Mas a senhora também disse que ele seria cobrado se um dia tivesse uma criança, mesmo que fosse um presente dos céus.

– Oh! – a princesa estava pasma com a história. Queira saber mais e aguardou enquanto
Theodore sorvia alguns goles do café. Então Moira se pronunciou, coisa rara até então:

–Deseja mais um pouco de café, princesa? Um copo de água, talvez?

– Não, não. Estou bem. Ansiosa talvez, mas estou bem sim. Obrigada, Moira.
Então ela percebeu: Theodore parecia muito cansado, quase doente. Moira também apresentava sinais de cansaço evidentes. Além disso, viu os ferimentos de ambos e percebeu então que a preocupação de Moira deveria ser baseada em seu próprio estado. Sentiu-se solidária a eles e disse:

– Pensando bem, acho que estou um pouco cansada. Não, acho que estamos todos cansados. Talvez devêssemos continuar amanhã para que possamos descansar. Muito embora eu queira ouvir toda a história não posso deixar de perceber que é tarde e vocês estão precisando muito de uma boa noite de sono. Agradeço muito a boa-vontade de ambos, mas não posso ignorar que seria abuso de minha parte. William, seria bom se cuidasse dos ferimentos de seus pais, não é? Tem medicamentos e bandagens? Posso providenciar.

O rapaz olhou-a com carinho e lhe disse:

– Não se preocupe, minha princesa. Cuidarei deles. Obrigado pela compreensão. Também acho que eles precisam descansar. Levarei a senhorita de volta e poderemos continuar amanhã, concorda?

– É evidente que sim! E Moira, Theodore, muito obrigada por me receber. Se precisarem de algo, me avisem, por favor. Boa noite! – e levantou-se antes que eles retrucassem.
O caminho de volta foi tranqüilo, inclusive dentro do castelo. Ao que tudo indicava, todos dormiam. Exausta com tantas emoções, Ameba despiu-se para deitar e a corrente com o lindo pingente em forma de coração caiu de seu decote. Havia se esquecido dele. Apreciou novamente a jóia e a guardou no fundo da caixa de jóias, juntamente com o mapa. Deitou-se ainda pensando na jóia pretendendo perguntar sobre ela no dia seguinte. Adormeceu imediatamente.